"A escada para o Reino dos Céus está escondida em tua alma. Mergulha para dentro dos pecados que estão em ti mesmo e, assim, encontrarás ali uma escada pela qual poderás ascender" Isaac de Nínive.
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Obs.: Abaixo, tradução do versículo bíblico para outras línguas:

"POR ISSO A ATRAIREI, CONDUZI-LA-EI AO DESERTO E FALAR-LHE-EI AO CORAÇÃO" Oséias 2,16
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segunda-feira, 28 de julho de 2014

A Cruz como caminho de individuação



 A Cruz como imagem do ser humano redimido*




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Em seus escritos, Carl Gustav Jung se voltou constantemente para o tema da cruz e vê na cruz um caminho da individuação, da autorrealização humana. Jung não escreve sobre a morte de Jesus na cruz, mas sobre a cruz como símbolo. O símbolo da cruz desempenha um papel importante no processo de individuação do ser humano. No curso de sua vida, cada ser humano precisa passar do Ego, que é o âmago consciente de sua pessoa, para o Self, o centro mais íntimo da pessoa, que inclui simultaneamente o consciente e o inconsciente. Nesse caminho da individuação, os símbolos têm uma tarefa especial. Jung refere-se aqui não apenas a símbolos, mas a imagens arquetípicas que são disponíveis na alma do ser humano e que desencadeiam e dirigem o processo da individuação.

Para Jung, Cristo e a cruz estão entre estes arquétipos que podem transformar o ser humano. Cristo é o símbolo mais desenvolvido do Self. É claro que Jung não dissolve o Jesus histórico numa imagem arquetípica. Também para Jung, Jesus foi uma figura histórica. Mas, ao mesmo tempo, ele apelou ao arquétipo do Self que está disponível na alma e o tornou ativo.

A cruz desempenhou um papel importante no caminho da transformação de Jesus. Também nosso caminho da individuação passa pela cruz. A cruz tem para Jung vários significados no processo de individuação. Em todos os distintos aspectos da cruz, trata-se para Jung sempre do efeito sanador e centrador sobre o Self do ser humano.

Por um lado, a cruz é um símbolo do sacrifício. Jung entende sob sacrifício o abandono do Ego em favor do Self e a renúncia à determinação pelos instintos, a transformação da libido. No sacrifício, o ser humano abandona-se a Deus. Para poder se entregar a Deus, o ser humano precisa primeiro conhecer-se a si mesmo. Por isso, o sacrifício é sempre antecedido por um ato de autoexame. A instância do ser humano que sacrifica algo do Ego é o Self. Ao sacrificar o Ego, o Self ganha a si mesmo. A cruz como sacrifício é, para Jung, ao mesmo tempo, uma imagem drástica da repreensão dos instintos. Aqui não se trata da superação dos instintos animais, mas de uma entrega do ser humano inteiro de “um disciplinamento de suas funções especialmente humanas e espirituais, em direção a uma meta espiritual supramundana”. O sacrifício na cruz não quer despedaçar o ser humano, mas promovê-lo em seu caminho interior. Na História, esse sacrifício, ao qual a cruz convidou os cristãos, “levou a um desenvolvimento da consciência que, sem esse treinamento, seria simplesmente impossível”. Sem o disciplinamento através da ascese cristã, manifestam-se novamente a rudeza e a falta de consciência da Antiguidade.

O segundo significado da cruz é para Jung que ela simboliza o sofrimento. Segundo Jung, cada passo no caminho da conscientização progressiva pode ser somente comprado com sofrimento. O sofrimento é o portão pelo qual o ser humano precisa passar quando quer se tornar consciente de si mesmo. O sofrimento tem sua causa principalmente no fato de que o ser humano tem de aceitar-se em suas contradições que às vezes ameaçam dilacerá-lo.  Quem se põe a caminho para tornar-se íntegro experimenta como está cruzado e contrariado por contradições e opostos interiores, pelo oposto de luz e trevas, de bem e  mal, de consciente e inconsciente, de masculino e feminino. 

Diz Jung:
Quem quer que se encontre no caminho para a integridade não pode escapar daquela estranha suspensão representada pela crucificação. Pois encontrará sem falta aquilo que o cruza e contraria, a saber, primeiro, aquilo que ele não quer ser (sombra); segundo, aquilo que ele não é, mas que o outro é (realidade individual do tu); e, terceiro, aquilo que é seu Não-Ego psíquico, a saber, o inconsciente coletivo.


Por estar empurrado para lá e para cá pelas contradições, o ser humano é para si mesmo uma cruz e não pode desviar-se da cruz como sofrimento.


Para Jung, o êxito de nos tornarmos humanos depende inteiramente da pergunta de como lidamos com o sofrimento. Quem se desvia do sofrimento que existe necessariamente junto a sua existência humana procura a neurose como sofrimento substituto. Por isso, a cruz como convite de aceitar e carregar o sofrimento que existe essencialmente devido à nossa contrariedade é para Jung favorável a nossa saúde e protege-nos da neurose na qual fugimos de nossa própria verdade.

Nesse sentido, carregar a cruz significa para Jung aceitar a própria cruz e não pensar que poderíamos carregar a cruz de Cristo.

A cruz de Cristo foi carregada por ele mesmo e foi a própria cruz que ele carregou. Certamente é mais fácil colocar-se sob uma cruz alheia e já carregada do que carregar a própria cruz, sob os insultos e o desprezo de seu mundo. Pois, ao fazer isso, fica-se belamente dentro da tradição e se ganha o elogio de ser piedoso. Isso é farisaísmo bem organizado e extremamente anticristão. Cristão é somente quem vive no sentido e no espírito de Cristo.

Sofrer significa a colisão de contradições e opostos, um conflito insolúvel. Exatamente nesse conflito, Deus é reconhecido como a união de todos os opostos:

Todo contrário é Deus, por isso, o ser humano tem de assumir esse peso, e ao fazê-lo, ele, com sua contrariedade, tomou posse dele, isto é, se encarnou. O ser humano fica repleto do conflito divino.

A cruz é o símbolo dessa suprema contrariedade e oposição. Quando o ser humano está disposto a confrontar-se com esse conflito, então experimenta nisso Deus, então “realiza-se dentro dele a imago Dei, a encarnação de Deus”. 

A cruz é para o ser humano o condutor no caminho para a individuação. Ela o promove no caminho da transformação. É a imagem da passagem dolorosa, sem a qual não há transformação. E ela se encontra também no fim do caminho como imagem do destino, da integridade e da completude que nos esperam no futuro. Pois a cruz mostra ao ser humano a possibilidade de unir dentro de si os opostos e contradições. É um símbolo ordenador.

A cruz significa ordem diante do desordenado ou caótico da multidão do povo informe. Ela é, de fato, um dos símbolos ordenadores mais antigos. Também no âmbito dos processos psíquicos, tem a função de um ponto central gerador de ordem.

Para Jung, a cruz é uma imagem da reconciliação de todos os opostos, portanto, não é uma imagem da propaganda militante e agressiva pelo cristianismo, mas um convite de reconciliar os opostos e as contradições em nosso mundo, os opostos entre as religiões e culturas, entre os povos e as camadas sociais, entre pobre e rico, entre religioso e não religioso, entre luz e trevas, entre céu e terra. É uma imagem que leva ordem ao caos de nosso tempo, em que tudo fica difuso e diluído, que traz orientação quando tudo se torna confuso e sem sentido. A imagem da cruz tem para Jung um efeito sanador. Ela nos protege de divisões interiores que sempre causam doenças, e nos estabiliza em meio à instabilidade de nosso tempo. Não foi por acaso que o próprio Jung colocou uma cruz na parede de seu escritório para se lembrar constantemente de como o caminho da individuação humana pode dar certo.


GRÜN, 2010, p. 84-94.
 

 

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*GRÜN, Anselm. A Cruz a imagem do ser humano redimido. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2010.


 

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